sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Crônica - Dura lex sed lex

De Gilberto Ferreira, em 3/8/2012


O rei Sabius Justus era um homem muito duro e tinha um coração de pedra. Governava o seu povo com extrema rigidez e não admitia a mínima desobediência à lei. Partia do princípio de que os seus súditos eram livres para escolher entre o bem e o mal. Escolhido o mal, isto é, a transgressão, havia de se abater sobre o infrator toda a desgraça da pena, independentemente das circunstâncias em que o fato fora praticado.
As leis do reino eram severíssimas. O furto era punido com a perda de um dos braços. O roubo, com a de dois braços e o assassinato, com a morte do infrator, por enforcamento ou degola.
Um dia chegou às suas mãos o apelo de uma mulher que fora presa sob a acusação de ter furtado um pão. A defesa argumentava que a mulher, tendo filho pequeno a amamentar, não poderia trabalhar, tendo praticado o furto apenas para matar a fome.
O rei, despachando de próprio punho, exarou o veredicto: "o furto de um pão é o mesmo que o de um milhão de reales. Tanto num, quanto no outro caso, a lei foi violada. No caso, com uma agravante. A mulher tinha filho, não poderia lhe dar o mau exemplo. E, por esse plus, mando que lhe corte também a língua!".
Lendo a decisão, o capelão invocou a clemência de Deus para a mulher, mas o rei apenas respondeu recitando um antigo e surrado ditado: dura lex sed lex - A lei é dura mas é a lei.
A vida seguiu o seu curso. O rei gostava de luxo e mandou construir nas proximidades de seu trono um assoalho especial, feito com madeiras importadas altamente sensíveis às pisadas dos mais desavisados. E para proteger a beleza daquele piso decretou: "é proibido pisar no assoalho com sapatos. O infrator será punido com a pena de morte".
Claro que os súditos iam até ao trono descalços. Entretanto, sucedeu-se que o filho mais velho do rei, estando muito gripado e não podendo ficar descalço, resolveu visitar o pai sem tirar os sapatos.
Um guarda prendeu-o e foi comunicar o fato ao rei.
-- Veneranda Alteza, prendi um rapaz que, desobedecendo as leis reais, pisou no assoalho sem tirar os sapatos.
-- Execute o rapaz. Dura lex sed lex.
O rapaz foi levado para a sala de execução. Em seguida, outro guarda veio até o rei trazendo um dos sapatos do infrator.
-- Veneranda Alteza, o rapaz saiu esperneando e deixou cair um de seus sapatos. Achei que Vossa Veneranda Alteza poderia ter interesse em examinar o objeto do crime.
O rei pegou o sapato e logo reconheceu que se tratava do sapato de seu filho mais velho. Mais observou que na sola havia uma grossa camada de veludo que não só protegeria o assoalho, como o deixaria muito mais reluzente e bonito.
Foi aí que o rei concluiu que o fundamento de sua norma não havia sido violado e que o rapaz nenhuma transgressão cometera, embora tivesse agido literalmente contra a lei.
Então, pela primeira vez em toda a sua vida, o rei voltou atrás, chorou e mandou libertar o rapaz imediatamente.
Mas já era tarde. A pena capital já havia sido cumprida. Dura lex sed lex!
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*Gilberto Ferreira é professor da PUC e juiz de Direito em Curitiba/PR

Um comentário:

  1. Clediston Rodrigues, Acadêmico de Direito, Catolica de Santa Catarina7 de agosto de 2012 às 18:13

    A imposição da mão do Estado contra o seu povo e também os habitantes, faz com que de certa forma fiquemos reféns de nós mesmos. Delegamos poder em algum momento da historia à cidadãos que prometeram lutar por nossos direitos.
    Como o conhecimento e as ações humanas tendem a desaparecer com o tempo, não se sabe como mas o despotismo e a sede de punição tomam conta do Estado que tende a engolir os seus filhos. Outrora o Estado se torna homem e habita cortes e palacios, vivendo em devaneio.
    A lei não pode estar acima do homem. Sua criação serve como regulador de tolerância, tentativa pacifica de haver harmonia aos que não a ignoram.
    A lei é feita para o homem e não o homem para a lei.

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