Nova contagem do prazo prescricional para os crimes contra a dignidade sexual praticados contra crianças e adolescentes
Publicado em 08/2012
Por Marcelo Pichioli da Silveira
O que se deve entender por “ação penal”, para que o prazo prescricional inicie sua contagem antes de a vítima completar os dezoito anos?
Entrou em vigor, no dia 17 de maio, a Lei nº 12.650/2012, cuja única alteração no art. 111 do Código Penal acabou por inserir-lhe um inciso V, restando previsto que “a prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr (...) V – nos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, previstos neste Código ou em legislação especial, da data em que a vítima completar 18 (dezoito) anos, salvo se a esse tempo já houver sido proposta a ação penal”.Saliente-se que o website do Planalto comete um pequeno equívoco ao aduzir que esta é uma redação “dada pela Lei nº 12.650, de 2012”, quando, a rigor, seguindo a própria práxis que se observa na escrituração de Leis no Brasil, o correto seria dizer “inciso V adicionado” por esta Lei. Então, fique este aviso inicial: o inciso V do art. 111 é novíssimo no ordenamento, não sendo uma modificação qualquer, e sim uma criação. Cabem, pois, várias considerações a respeito.
O que há, como visto, é um novo termo inicial de contagem de prescrição antes da sentença. De relance, é valioso mencionar ser no mínimo curioso constatar que esta novidade legislativa se origina em plena “CPI da Pedofilia”, cujo óbvio escopo é, no plano das teses, “ampliar a proteção das crianças e adolescentes sob a égide do Princípio da Proteção Integral (artigo 227, CF, c/c artigo 1º., da Lei 8.069/90)” [1].
O fundamento da novidade é o de supostamente incluir o menor que é vítima dos abusos sexuais em sua infância ou adolescência no rol daqueles que podem “quedar calados sobre os fatos”[2] em tempo que fosse suficiente para que o agente lograsse sua extinção da punibilidade pela prescrição. Logo, a alteração do início da contagem para quando a vítima completasse seus 18 anos poderia conceder-lhe mais tempo para tomar a decisão de denunciar o abuso [3].
Algumas perguntas – com ou sem conotação crítica – já começaram a ser feitas acerca da novidade legal. A maioria delas demonstra como o legislador brasileiro anda infeliz. Estes questionamentos não se tratam de apreciações que censuram os fundamentos legais invocados (talvez até coerentes). São, antes de tudo, demonstrativos da falta de precisão na redação da Lei, no modus operandi do legislador brasileiro em lograr seus intentos. A seriedade do problema é tal qual o que se enfrenta perante os tipos legais mal formulados e vagos em si.
Tudo parece residir no seguinte fragmento do novo inciso V: “ (...) salvo se a esse tempo já houver sido proposta a ação penal”. É desta parte que brotam os questionamentos mais profundos sobre a incipiente questão. O primeiro ponto demanda algumas considerações de índole hermenêutica: o que se deve entender por “ação penal”, para que o prazo prescricional inicie, efetivamente, sua contagem, antes de a vítima completar os dezoito anos? Seria o mero oferecimento da denúncia ou o seu recebimento, pelo magistrado, que iniciaria a contagem do prazo?
Este assunto já repercurte na literatura. Alguns, como Eduardo Luiz Santos Cabette, já postularam que é melhor entender que o recebimento da denúncia será verdadeiramente o marco inicial a que faz ressalva o legislador no inciso V do art. 111 [4]. Esta até aparenta ser uma resposta conveniente. Porém, duas ordens de pensamento podem espancar tal proposta: 1) primeiramente, é melhor, para o réu, que a contagem comece com o oferecimento da denúncia (e a carga principiológica do sistema acaba se traduzindo na interpretação que lhe seja mais favorável); 2) não se pode olvidar que “o Estado (...), através do órgão do Ministério Público, exerce a ação, a fim de ativar a jurisdição penal”, e nem mesmo que “a ação penal (...) não difere da ação quanto à sua natureza, mas somente quanto ao seu conteúdo” [5]-[6]. Se contrário for o voluntas legislatoris, diga-se logo: errou feio o legislador, por ser impreciso nos termos jurídicos. Não se pode perder de vista que o direito de ação é autônomo, e seu exercício na esfera penal não depende do recebimento da denúncia (exemplificando: de que adianta a tese, então, de que “a prescrição ‘não ataca’ a ação, mas – isto sim – a pretensão”, cujo argumento se funda no inciso XXXV do art. 5º da Constituição de 1988?). Ademais, para tanto, “não se faz imprescindível tenha sido violado um direito material” [7].
Outra questão que vem à tona é o que intentavam as teorias “do esquecimento” e “da prova”, duas das várias posições justificadoras da prescrição, cujas lições, respectivamente, dão conta de que “extingue-se, com o tempo, a lembrança do delito, perdendo o fato repercussão social em decorrência do que a punição torna-se despicienda, não havendo carência de punir, pois as finalidades pretendidas por via da pena não mais se concretizaram, passados anos do acontecimento do ilício” [8] e “[também] com o tempo, as provas dispersam-se, tornando incerta a demonstração da responsabilidade do agente. Os meios de prova não apenas revelam-se inseguros, mas até mesmo difíceis de serem produzidos” [9]. Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli se inclinavam ao ponto central da prevenção especial, aduzindo que “se a ressocialização se produz por si só, sem a intervenção da coerção penal, o cárcere fica sem sentido” [10].
Neste ínterim, de grande destaque o aviso de Cabette, que merece íntegra menção:
Os crimes contra a dignidade sexual já são naturalmente de difícil comprovação, tendo em vista a sua prática normalmente oculta sem testemunhas presenciais. O que se dirá quando se tratar com crimes perpetrados há muitos anos. Imagine-se uma criança abusada aos 4 anos de idade, que aos 18 anos ou mais adiante resolve tomar providências e denunciar os abusos. Como se poderá obter a prova da materialidade delitiva? Será que a palavra da suposta vítima poderá ser acatada com grande credibilidade devido à passagem do tempo e às confusões psicológicas e mnemônicas naturais ocasionadas? Se houver testemunhas, como será resolvida a questão da memória? [11].Avisos e exemplos como os expostos supra permitem invocar o raciocínio tridimensional de Miguel Reale (tese que, ultimamente, tenho dedicado especial atenção [12]), para o qual, neste particular, há que se questionar três coisas: a primeira, “quanto à obrigatoriedade da norma jurídica para todos, em geral, e para determinada pessoa em particular”. A segunda, acerca da “conversão efetiva da regra de direito em momento da vida social”. A terceira está no âmbito da “legitimidade”, na indagação dos “títulos éticos dos imperativos jurídicos”. Estas três observações correspondem, respectivamente, à vigência, à eficácia e ao fundamento [13]. Dizia Reale: “a meu ver, vigência, eficácia, e fundamento são qualidades inerentes a todas as formas de experiência jurídica, muito embora prevaleça mais esta ou aquela, segundo as circunstâncias, sem que se possa partir o nexo que as vincula ao todo, como é próprio da estrutura do direito” [14]. Certamente, a novidade da Lei nº 12.650/2012 parece ser só mais um exemplo que comprova a referida posição. Prevalecerá a eficácia normativa, nestes casos, onde já se percebem as dificuldades de ordem pragmática envolvendo a seara probatória? Mais ainda: e se a vítima desses crimes, antes de completar os 18 anos, morrer? O Ministério Público poderia oferecer denúncia depois de muitos anos, considerando a mesma data que a vítima completaria a idade?
Por fim, merece destaque a ideia de que a novidade legal é novatio legis in pejus. Em sendo a prescrição penal um instituto de direito material (e não processual [15]-[16]), o inciso V do art. 111 só alcança, assim, fatos ocorridos a partir de sua vigência. Este raciocínio aparenta ser o único de fácil resposta. O restante da problemática, ao que parece, terá sua solução com o passar do tempo.
Referências
BETANHO, Luiz Carlos; ZILLI, Marcos. Da extinção da punibilidade. In: FRANCO, Alberto Silva; STOCCO, Rui (Orgs.). Código Penal e sua Interpretação. São Paulo: RT, 2007.CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Nova contagem do prazo prescricional para os crimes contra a dignidade sexual praticados contra crianças e adolescentes (Lei nº 12.650/12). Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3246, 21 maio 2012 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/21820>. Acesso em: 22 maio 2012.
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiros, 2010.
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2012.
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. São Paulo: Saraiva, 2010.
REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal – Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
SILVEIRA, Marcelo Pichioli da. Ensaio filosófico-penal: uma aproximação da Teoria Tridimensional do Direito, de Miguel Reale, com o Finalismo Penal de Hans Welzel. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 3013, 1 out. 2011 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/20123>. Acesso em: 18 jul. 2012.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2010.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. São Paulo: RT, 2001.
Notas
[1] CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Nova contagem do prazo prescricional para os crimes contra a dignidade sexual praticados contra crianças e adolescentes (Lei nº 12.650/12). Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3246, 21 maio 2012 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/21820>. Acesso em: 22 mai. 2012.[2] CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Ibidem. Op. cit.
[3] CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Ibidem. Op. cit.
[4] CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Ibidem. Op. cit.
[5] CINTRA, Antonio Carlosd e Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 279.
[6] Vale o advertência de Aury Lopes Jr.: “[...] a rigor, constitui uma impropriedade falar em ação penal pública e privada, eis que toda ação penal é pública, posto que e uma declaração petitória, que provoca a atuação jurisdicional para instrumentalizar o Direito Penal e permitir a atuação da função punitiva estatal. Seu conteúdo é sempre de interesse geral. O correto é classificar em acusação pública e acusação privada, ou, se preferirem seguir classificando a partir do crime, teremos ação penal de iniciativa pública e ação penal de iniciativa privada. Contudo, no Brasil, o rigor técnico foi deixado de lado e já está consagrada a terminologia delitos de ação penal pública e delitos de ação penal privada [...]” (LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 361).
[7] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 160.
[8] REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal – Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 517.
[9] REALE JÚNIOR, Miguel. Ibidem, p. 518.
[10] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. São Paulo: RT, 2001, p. 753.
[11] CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Ibidem. Op. cit.
[12] “A compreensão de Reale é tão ampla que pode mesmo ser ‘ferramenta de auxílio’ para melhor empreender alguns dos primeiros passos dados nos estudos penais. Assim, pode-se mencionar que a dogmática penal, a criminologia e a política criminal se traduzem, respectivamente, no que é normativo (atividade científica da norma penal), fático (estudo do fenômeno criminal e da realidade do delinquente) e valorativo (propõe transformações no sistema penal vigente). Estes elementos, observados dialeticamente, correspondem ao que Reale entende ser a experiência jurídica” (SILVEIRA, Marcelo Pichioli da. Ensaio filosófico-penal: uma aproximação da Teoria Tridimensional do Direito, de Miguel Reale, com o Finalismo Penal de Hans Welzel. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 3013, 1 out. 2011 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/20123>. Acesso em: 18 jul. 2012.).
[13] REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 15.
[14] REALE, Miguel. Ibidem. p. 21.
[15] Neste sentido, dentre vários autores: REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal – Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 516-517; BETANHO, Luiz Carlos; ZILLI, Marcos. Da extinção da punibilidade. In: FRANCO, Alberto Silva; STOCCO, Rui (Orgs.). Código Penal e sua Interpretação. São Paulo: RT, 2007, p. 556, dentre outros.
[16] Mesmo com o argumento de que existem leis que são mistas, entendo, como Aury Lopes Jr., apesar de possuírem – como decorre, claro, da própria terminologia – elementos penais e processuais, “nesse caso, aplica-se a regra do Direito Penal, ou seja, a lei mais benigna é retroativa e a mais gravosa não, eis que disciplinam um ato realizado no processo, mas que diz respeito ao poder punitivo e à extinção de punibilidade” (LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 258).
O semper aeterna novatio legis in pejus, tem a verdadeira impressão da impunidade no Estado brasileiro. Como uma lei criada agora e com o tempo tegular de vigência não pode ser aplicada ao caso concreto atual, simplesmente por ser mais maléfica ao réu?!
ResponderExcluirO elemento que comete o crime sexual tem plena capacidade de consciência do que está fazendo, que Deus nos ajude, com um menor.
Alguém em particular deve estar tirando vantagem dessa situação, se não forem os próprios legisladores.
O Código Penal brasileiro deveria mudar de nome, pois de penal tem muito pouco!
Parabéns!O presente artigo mostra a impericia do legislativo frente a criação das Normas. A impressão que temos é que há uma intenção de se fazer uma bagunça, uma anarquia com a sociedade.
ResponderExcluirNão conseguimos apalpar a tão esperada justiça que parece mais e mais tão abstrata!
Vemos que existe no minimo uma preocupação dos legisladores em aperfeiçoar as leis do Código Penal, ou será irresponsabilidade com a sociedade.
ExcluirAcadêmico: Afonso Schroeder
Com berço na Inglaterra vemos que os avanços são significativos, mas devemos reconhecer que o homem pela sua imperícia de compartilhar os bens materiais, foi ao longo dos séculos formando uma percentagem de cidadãos alheio as coisas que devem fazer parte de todo ser, vemos uma preocupação superficial onde cidadãos que não têm o minimo de sensibilidade humana e situação econômica muito definida,como podem cidadãos (legisladores), fazer as modificações que se fazem necessárias???
ResponderExcluirAcadêmico: Afonso Schroeder